O que o filme ‘Som do Silêncio’ nos ensina sobre a importância da equipe multidisciplinar no acolhimento e orientação de pessoas diagnosticadas com surdez

Por Carla Olavarria Rigamonti

O “Som do Silêncio” (do inglês “Sound of Metal”, que numa tradução direta seria “O Som do metal”) é um filme sobre Ruben, um jovem baterista que perde repentinamente a audição. Esse é a história principal, e a partir daqui o texto contém – muitos – spoilers. É possível ter uma série de reflexões para pensarmos sobre a surdez súbita do protagonista, desde o quanto isso afeta a sua vida em uma banda de metal – composta por ele e pela namorada, que viviam na estrada, tocando por onde passavam; até questões mais complexas como, por exemplo, a língua de sinais sendo introduzida como forma primária de comunicação de uma pessoa cuja primeira língua é oral.

A reflexão que eu gostaria de propor aqui, no entanto, é a respeito da importância da escuta e da intervenção de uma equipe no processo do implante coclear. Que pulo, né? Sim, afinal a maior parte do filme se passa com Ruben numa comunidade de usuários de drogas em recuperação, como ele, cuja primeira língua é a língua de sinais. E o filme é muito fiel nesse momento, trabalhando com atores surdos e, inclusive, tendo como importante coadjuvante um ator que é “filho ouvinte de pais surdos”, o Joe, que é quem recebe e insere Ruben nessa comunidade.

Acho que esse é justamente o meu incômodo ao ver o filme: tem uma preocupação tão grande e cuidadosa em mostrar a importância da inserção de Ruben nessa comunidade surda, e o quanto isso é fundamental para que ele não volte a usar drogas como estratégia para lidar com a perda enorme que acabou de viver, ao passo que a parte do implante coclear fica negligenciada, simplista até.

Na comunidade, Ruben fica imerso. Tem que deixar tudo de sua vida antiga, para passar a viver uma nova realidade, conhece outras pessoas, e vai aprendendo a língua de sinais. Esse retrato é lindo, e emociona (inclusive, nesse ponto, acho válida a leitura do capítulo sobre surdez no livro “Longe da árvore”, de Andrew Salomon, no qual ele explora a importância dessa imersão na comunidade surda para o aprendizado e a transmissão da cultura).

E por que eu quero falar sobre o implante coclear? O que é que me incomoda?

Bom, logo que tem sua surdez diagnosticada, o médico fala para Ruben sobre o implante. O protagonista, então, quer fazer a cirurgia logo e poder voltar à vida normal, mas o médico explica que a cirurgia é cara e complexa. Com isso, Ruben acaba indo para a comunidade surda, justamente porque a preocupação principal de sua namorada, Lou, é que ele não volte a usar drogas. Justo. Sob protestos e muito sofrimento, ele segue para a comunidade, e lá ele aprende, se engaja, ensina. Enfim, parece que ele está bem, e aí de repente ele vende todos seus instrumentos musicais e seu trailer, liga para marcar uma consulta com uma audiologista, e poucas cenas depois ele aparece fazendo a cirurgia, para então acordar com a cabeça enfaixada, com a audiologista do lado dele, escrevendo em uma lousa que a ativação será em QUATRO semanas.

Sério. É assim que acontece – ou seja, antes da cirurgia ele não sabia que entre o procedimento cirúrgico e a ativação tinha um intervalo de quatro semanas.

Vamos falar sobre manejo de expectativas? Ninguém fala para o Ruben, antes da cirurgia, que ele nunca vai voltar a escutar como antes. Ninguém diz que os resultados levam tempo e trabalho para acontecer. Ninguém explica que, se um dia ele conseguir voltar a tocar, não será em questão de meses. O que o Joe, líder da comunidade de surdos, fala (e eu acho isso bonito), é que na comunidade em que eles vivem, ninguém vê a surdez como algo a ser consertado.

Mas a gente não pode falar que as pessoas disseram, avisaram, e o protagonista não quis entender. Na verdade, ninguém contou a real para o Ruben.

No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) prega o atendimento de uma equipe multidisciplinar para atender candidatos ao implante coclear e implantados justamente para evitar esse tipo de situação. Vamos, então, fazer uma pequena análise do que faltou ao Ruben?

  1. Assistente social: é importante saber que Ruben não tem uma renda fixa e que usou todo o seu dinheiro e seus bens para pagar pela cirurgia e pelo aparelho. Como ele vai fazer os próximos mapeamentos? E a terapia fonoaudiológica? Ele tem convênio? E se e aparelho quebrar? Ele sabe da importância de ter uma poupança, ou alguma fonte de renda para a manutenção do aparelho? Sendo deficiente auditivo, Ruben passa a ter algum benefício municipal ou federal?
  2. Psicóloga (o): qualquer questionário de manejo de expectativas apontaria para a clara negação de Ruben em relação à surdez. Inclusive, parece que todo o seu processo de inserção na comunidade surda serviu para ele se reorganizar e voltar exatamente ao mesmo ponto: recuperar a antiga vida dele. A psicóloga poderia ouvir a posição subjetiva de Ruben, compreender o momento do seu processo de elaboração do trauma da surdez súbita, explorar os ideais inconscientes que ficaram em jogo com essa perda. Sobre esse ponto, pela minha experiência no Escuta, posso dizer que os pais falam que não conseguiam “ouvir” (ou acreditar, se ligar mesmo) quando a psicóloga falava sobre expectativas antes da cirurgia de implante do filho, mas quando, posteriormente, a “ficha caía”, ter tido aquela conversa era uma referência fundamental para eles.
  3. Avaliação fonoaudiológica: sério, ninguém falou para o Ruben que o implante só seria ativado quatro semanas depois da cirurgia. Sem comentários.
  4. Médico: aparece no momento do diagnóstico, na cirurgia, e nunca mais. (Médicos, que cicatriz é aquela?)
  5. Terapia fonoaudiológica: Ruben não faz nenhuma sessão. Nada. Inclusive, não me lembro de terem falado para ele que isso era importante. E apesar disso, há uma discussão sobre o quão realistas são os resultados dele nesse texto da ACI Alliance (Associação Americana de Implante Coclear) (https://www.acialliance.org/page/SoundofMetal) : “É notável quão rápido Ruben foi capaz de se comunicar oralmente logo após a ativação dos seus implantes (…) Isso após uma total inabilidade, anterior ao implante, de entender fala”

Na minha opinião, um filme que trata de forma tão ingênua o processo de avaliação e acompanhamento de pacientes implantados tem um incrível poder: de afirmarmos, mais uma vez, a importância do trabalho que fazemos e a profundidade emocional e social dos efeitos de uma perda auditiva súbita. A famosa negação e o luto são processos inconscientes, intensos, e sem tempo determinado. Cabe a nós, como equipe, e junto com a família, trabalhar justamente com isso. Ou seja: esse é o nosso material.

E para concluir: o filme é ótimo. Se vocês não viram, aqui no Brasil ele está disponível pela Amazon Prime. Ele é lindo de ver e emocionante de ouvir – eles fazem inclusive uma simulação muito bacana do som que Ruben ouve com o implante. Vale a pena 😉

3 comentários em “O que o filme ‘Som do Silêncio’ nos ensina sobre a importância da equipe multidisciplinar no acolhimento e orientação de pessoas diagnosticadas com surdez”

  1. Parabéns! Seu texto é ótimo e muito explicativo, pois fiquei com muitas dúvidas e você ajudou a saná-las. Mas ainda tenho algumas.
    Os sons que ele ouve quando faz o implante, parecendo totalmente eletrônicos, são bem representados no filme ou na vida real é muito diferente?
    O ator do Joe tem pais surdos? Também notei que no filme eles usam somente a palavra surdo e não deficiente auditivo. Aqui no Brasil existe algum debate sobre qual termo é mais adequado e quais os motivos?

    O SUS realiza esse tipo de implante?? Quanto mais rápido entre o momento de surdez e o implante, os resultados serão melhores???

    Muito obrigado!

  2. Sou implantada coclear há 13 anos, sou ensurdecida e quando fiz a cirurgia passei por um processo de preparação de um ano de exame e consultas com todos os profissionais da equipe de saúde. Apesar desse filme ter uma visão nada realista sobre o que é escutar com o implante coclear e sobre a comunidade surda (tratada de forma romantizada e segregada da realidade) não é um filme sobre surdez mas sobre o drama humano do luto e da perda de um bem incomensurável, o de escutar e sobre aprender a ouvir, algo que não se consegue nem com cirurgias nem com lingua de sinais mas com amadurecimento e auto conhecimento que para o protagonista do filme se iniciou na última cena, quando finalmente se encontra a sós com o seu silêncio compulsório. Angela Guimaraes. RJ

  3. Na Netflix tem a série Crisálida, uma produção independente brasileira de 04 episódios de 30 min. que retrata um recorte da comunidade surda do Brasil. Fica a dica para quem gosta do tema.

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